quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O que faz um poema ser um poema? – Charles Bernstein


[Minha leitura se chama 
O que faz um poema ser um poema? 
e vou ligar o cronômetro]

Não é a rima das palavras no fim da linha
Não é a forma
Não é a estrutura
Não é a solidão
Não é o espaço
Não é o céu
Não é o amor
Não é a luminosidade
Não é o sentimento
Não é a metrificação
Não é a época
Não é a intencionalidade
Não é o desejo
Não é a temperatura
Não é a esperança
Não é o assunto escolhido
Não é a morte
Não é o nascimento
Não é a paisagem
Não é a relação de palavras
Não é o que há entre as palavras
Não é o cronômetro
Não é o... 
É o tempo




Charles Bernstein nasceu em Nova Iorque, em 1950. Charles Bernstein participou da L=A=N=G=U=A=G=E, publicada entre 1978 e 1981 (e que pode ser lida aqui
No Brasil saiu o livro Histórias da guerra, pela Martins Fontes, com textos e poemas seus, e o poema Um teste de poesia teve uma tradução de Haroldo de Campos. 

A leitura-poema acima caminha e se encaminha para a palavra timing, que bem podia ser traduzida por... timing...? Opção que seria "traduzir" e "não-traduzir" ao mesmo tempo, ou que poderia se constituir como uma possível resposta à pergunta feita por ele, o que faz um poema  ser um poema?... Pensando na tradução como um processo em aberto, deixei por enquanto o tempo ali, palavra que abarca muitas outras possibilidades e campos semânticos e que não corresponde ao timing, nem ao timing bersnsteiniano, mas pode gerar outras perguntas, pode gerar outros diálogos, pode gerar outros tempos... Agradeço ao comentário da Bia (Beatriz Bastos), que pensando na leitura que faz o Bernstein ali sugere outras possíveis traduções, como por exemplo repetição, ótima solução, sobretudo pela estrutura parafrásica do poema.   

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Te oferecerei um abismo... – Roberto Bolaño


Te oferecerei um abismo, disse ela
mas de forma tão sutil que você só perceberá
quando já tiver passado muito tempo
e você estiver longe do México e de mim.
Quando mais precisar você vai descobrir,
e esse não será o final feliz,
mas só um instante de vazio e felicidade
E talvez então você se lembre de mim,
ainda que não muito.


*

[a tradução deste foi feita

a 4 mãos, 1 suco de uva roxa
e 1 café capital num caderninho 
desenhado. foi feita sem abimos]

domingo, 19 de agosto de 2012

Um guarda-chuva de Piccadily – Jaroslav Seifert


Se você não sabe o que fazer em relação ao amor
tente se apaixonar outra vez –
por exemplo, pela Rainha da Inglaterra.
Por que não!?
O rosto dela aparece em todos os selos postais
daquele antigo reino.
Mas se você a convidasse
para um encontro no Hyde Park
com certeza
esperaria em vão.

Se tivesse um mínimo de senso
diria a si mesmo sabiamente:
Por quê?, é claro, entendi:
está chovendo no Hyde Park hoje.

Quando esteve na Inglaterra
meu filho me trouxe de Piccadilly em Londres
um elegante guarda-chuva.
Sempre que preciso
tenho agora sobre a minha cabeça
meu próprio céu em miniatura
que pode até ser preto
mas em seus raios de arame tensionados
a misericórdia de Deus escorre como
uma corrente elétrica.

Abro meu guarda-chuva mesmo quando não chove
como um dossel 
sobre o volume dos sonetos de Shakespeare
que levo no bolso.

Mas em alguns momentos até 
o cintilante buquê do universo me assusta.
Ultrapassando a beleza
ele nos ameaça com tamanha infinitude
que parece mais
o sono da morte.
Ele também nos ameaça com o vazio e quando congela
suas milhares de estrelas
que à noite nos iludem
com seu brilho.

Aquela a que chamamos Vênus
é a mais aterrorizante.
Ela possui pedras que ainda estão fervendo
e como gigantescas ondas
as montanhas vão surgindo
e queimando as cascatas de súlfur.

Sempre perguntamos onde será que fica o inferno.
Ele está ali!

Mas para que serve um frágil guarda-chuva
diante do universo?
Além do quê, eu nem mesmo o levo comigo.
Tenho bastante trabalho
para ficar
me arrastando pelo chão
como uma mariposa noturna durante o dia
em uma áspera casca de árvore.

Toda minha vida procurei o paraíso
que outrora existiu aqui,
cujos rastros eu havia encontrado
somente nos lábios das mulheres
e nas curvas produzidas pela sua pele 
com o calor do amor.

Toda minha vida desejei
a liberdade.
Enfim, descobri o caminho
que até ela conduz.
É a morte.

Agora que estou velho
verei o rosto de alguma charmosa mulher
uma vez ou outra flutuando entre meus cílios
e seu sorriso transformará meu sangue.

Timidamente me viro 
e lembro da Rainha da Inglaterra,
cujo rosto está em todos os selos postais
daquele antigo reino.
God save the Queen!

Sim, eu sei muito bem:
está chovendo no Hyde Park hoje.




Jaroslav Seifert nasceu em Praga, em 1901. Depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura em Estocolmo, em 1984, Jaroslav Seifert faleceu em Praga, em 1986. Nesse poema, Jaroslav não está no Hyde Park, mas se ele me convidasse para um encontro ali, não me esperaria em vão (even raining). Nesse poema, está chovendo no Hyde Park, e eu estou do outro lado do hemisfério sentada sob o sol, lendo o lindo volume que reúne sua poesia em inglês, The poetry of Jaroslav Seifert, de onde traduzi "Um guarda-chuva de Piccadily". (há também 2 poemas de Jaroslav em português aqui na Modo de usar & co.)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

No filme... – Roberto Bolaño


No filme na TV o gângster toma um avião
que se levanta lentamente contra um entardecer em preto e branco.
Sentado na poltrona você movimenta a cabeça: na janela
vê o mesmo entardecer, as mesmas nuvens em preto
e branco. Você levanta e cola a mão no cristal:
o reator do gângster abre caminho entre as nuvens,
nuvens incrivelmente lindas, cachos da cabeleira
do seu primeiro amor, lábios ideais que formulam
uma promessa, mas que você não entende.
A imagem que se desloca pelo céu, a imagem
do televisor são idênticas, o mesmo anseio, o mesmo
olhar. E no entanto, você treme e não entende.




Roberto Bolaño nasceu em 1953, no Chile. Roberto Bolaño partiu em 2003, de Barcelona. Roberto Bolaño dispensa apresentações, depois dos livros que deixou, sobretudo seus romances 2666 e Los detectives salvages. Roberto Bolaño publicou em vida um livro de poemas, Três, com três poemas longos, e deixou organizado para publicação A universidade desconhecida, de onde traduzi este poema, com textos escritos entre 1977 e 1993, espécie de "universidade móvel", como ele chamou o livro, testemunho dos anos de formação literária. O vídeo reproduzido nesse post foi feito às margens do rio Sena em um entardecer preto e branco de um julho já meio distante. Na ocasião senti essa tremura diante das nuvens e suas formas mutantes: tudo está ali mas você não entende.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Tia Elizabeth – Pierre Alferi


Tante elizabeth, (pierre alferi)

Tia Élizabeth

Atrás da casa da nossa Tia Elizabeth há o mais lindo pomar dos pomares
e no pomar a mais linda cerejeira das cerejeiras
e na cerejeira os mais lindos galhos dos galhos
e sobre os galhos as mais lindas folhas das folhas
e sobre as folhas o mais lindo ninho dos ninhos
e no ninho os mais lindos ovos dos ovos
e sobre os ovos o mais lindo pássaro dos pássaros
e sobre o pássaro as mais lindas penas das penas
e sobre as penas as mais lindas cores das cores
Sobre as cores há o mais lindo céu dos céus
e no céu a mais linda nuvem das nuvens
e na nuvem a mais linda chuva das chuvas
e sobre a chuva o mais lindo sol dos sóis
e ali como não há mais nada meia-volta volver


Esse vídeo, esse poema, esse cinema, esse cine-poema de Pierre Alferi. 
O áudio é tirado, segundo ele, de uma canção folclórica francesa. O texto que aparece ali não bate com o áudio. O texto que traduzo aqui é o que aparece como legenda no vídeo, porém na tradução ele acabou se constituindo com um desenho de poema, uma mancha de poema, enquanto que no vídeo, ele está emaranhado com o vocovisual in motion (portanto, a tradução deve funcionar entre chaves... outra opção de tradução seria preparar um outro vídeo, jogando com os mesmos elementos e meios do seu trabalho).
Pierre Alferi nasceu em Paris, em 1963, e é autor de romances, livros de poemas e de poética, como é o caso do seu lindo Chercher une phrase. Também tradutor, Alferi desenvolve um interessante trabalho com vídeos, buscando essa compaginação de texto e imagem, como aparece nesse "Tante Elizabeth".